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Mauro Silveira reconstitui, em reportagem historiográfica, a tentativa de fraude na eleição de 1982 no Rio

"A função do historiador é lembrar a sociedade aquilo que ela quer esquecer". Aplicável ao jornalismo, a conhecida frase do historiador inglês Peter Burke veste sob medida, na opinião do também historiador e pesquisador Américo Freire, a reportagem historiográfica do jornalista e professor da PUC-Rio Mauro Silveira sobre a tentativa de fraude na votação de 1982 ao governo do Rio. Para mergulhar fundo neste episódio turvo da redemocratização brasileira, Mauro entrevistou jornalistas e políticos envolvidos com a corrida eleitoral e se debruçou sobre textos da época e pesquisas acadêmicas. Os fragmentos de memória costurados por dois anos de meticulosa pesquisa dão vida ao livro O caso Proconsult: a história da tenbtativa de fraude que caiu no esquecimento (Autografia, 2019), lançado nesta segunda (9), na Travessa de Botafogo.

O debate que acompanhou o lançamento, mediado pelo diretor do Departamento de Comunicação da PUC-Rio, Leonel Aguiar, confirmou a força de um trabalho desses de memória para irradiar reflexões importantes sobre o papel da imprensa diante dos desafios democráticos que permeiam a nossa história. Jornalistas, historiadores, pesquisadores, professores e estudantes reunidos na livraria passearam por bastidores da cobertura política naquele reencontro com as urnas. Inclinaram-se, com ares um tanto nostálgicos, ao ímpeto informativo da extinta Rádio JB AM, determinante para evitar uma fraude na contagem dos votos (registrados ainda em papel) ao governo fluminense em 1982. Enquanto a contabilidade oficial, feita pela empresa Proconsult, reiterava a vantagem de Moreira Franco (PDT) e projetava a vitória do candidato dos militares, a apuração paralela da Rádio Jornal do Brasil AM, coordenada pelo jornalista Pery Cotta, indicava o êxito do ex-governador gaúcho Leonel Brizola."Já passou muito tempo, e essa história acabou esquecida. Mas é importante ser lembrada, porque foi um trabalho de apuração intenso. Vivemos muitas tensões, e por fim prevalaceu a verdade", recordou Cotta.

Com base em depoimentos e documentos, Mauro retrata algumas dessas tensões. Como as ameaças do vice-presidente da Proconsult, Arcádio Vieira, sobre o coordenador da Rádio JB, Procópio Mineiro, caso não fossem revistos os prognósticos que apontavam a vitória de Brizola. "Mas, em nenhum momento, eu tive medo. Aliás, não sei explicar direiro, nunca tive medo de nada", assegurou o ex-coordenador de jornalismo da Rádio JB, ao responder à indagação do também jornalista e professor Creso Soares Junior sobre os receios vividos no enfrentamento à contagem oficial dos votos, seguida por boa parte da imprensa. 

"Fatos assim não podem cair no esquecimento. Percebi, até pelo convívio com jovens jonalistas e estudantes de comunicação e de história, que poucos ouviram falar no que se convencionou chamar de Caso Proconsult. Esse, digamos, esquecimento foi uma das minhas principais motivações para a pesquisa", justifica o autor, hoje um dos coordenadores da Rádio PUC, do Comunicar. A outra motivação é pessoal: Mauro participou, aos 24 anos, daquela histórica cobertura, justamente pela Rádio JB. A incursão científica permitiu-lhe rever a largada profissional. "Este trabalho me ajudou a reconstruir um pocuo da minha história profissional e pessoal", completa.

 

Os 40 anos de vida profissional, boa parte deles passada em redações de jornal (JB, O Globo, O Dia) e de rádio (JB AM, CBN, BandNews), encontram-se de alguma forma caligrafados nas 176 páginas do livro, um desdobramento da dissertação de Mestrado em Bens Culturais e Projetos Sociais do Centro de Documentação e Pesquisa (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro. Ao rigor científico, Mauro somou a missão jornalística de, como apontou Burke aos historiadores, lembrar o que não pode ser esquecido, e assim espantar os negacionismos e as distorções à espreita. Ele navega, com afinco de repórter e meticulosidade historiográfica, por mares turbulentos da política e da cobertura jornalística. Remontam, muito antes de se falar em fake news, às informações discrepantes que habitaram a reta final da corrida ao governo fluminense em 1982.

A imprecisão da contabilidade oficial não resistiu, como se sabe, ao garimpo da verdade empreendido, sobretudo, pela Rádio JB. A eleição de Leonel Brizola acabou inexoravelmente reconhecida. Não sem antes, contudo, germinar tensões e dilemas na imprensa e no tabuleiro político às voltas com uma paulatina recomposição democrática. É neste trilho farpado que trafega Mauro Silveira, para detalhar e discutir os embates que marcaram aquela retomada das urnas, depois de uma década e meia de ditatura. Era a primeira eleição direta do recém-criado Estado do Rio, resultado da fusão entre os estados da Guanabara e do antigo Rio de Janeiro. "Este trabalho busca analisar o papel da imprensa e a sua responsabilidade naquele momento histórico do país, assim como refletir sobre as disputas de narrativas em torno da legitimidade do processo eleitoral", destaca o autor.

O apuro científico da reportagem historiográfica, orientada por Américo Freire, se expressa no equilíbrio e na consistência com que Mauro aborda o tal caso e as diversas implicações e interpretações nele circunscritas. Mauro resguarda a reconstrução da memória - individual e coletiva - em referências a autores como Michael Pollak e Maurice Halbawachs. Este cuidado se manifesta na ponderação, essencial à leitura da obra, feita pelo autor na Introdução: "Grande parte dos jornalistas e políticos entrevistados para este trabalho discorreu sobre os acontecimentos a partir dos seus interesses e posicionamentos atuais, selecionando e enquadradndo os fatos recordados. Com isso, promoveram o 'enquadramento da memória' da forma como é descrito por Pollak". 

Ao costurar essas memórias "fragmentadas" e "disputadas", o jornalista e professor da PUC-Rio vai além de reconstituir os embates políticos e jornalísticos alusivos à tentativa de fraude eleitoral em 1982. Ele fertiliza e atualiza o debate sobre os compromissos e as funções da imprensa no seio da representação democrática.


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